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Por Portal de Bebidas Brasileiras| 05/03/2018
UM ACORDO ENTRE o governo do Paraná e a Ambev concedeu à gigante da indústria de bebidas incentivos fiscais que podem chegar a R$ 843 milhões até 2020. Assinado em 2012, o documento integral foi mantido em sigilo por mais de cinco anos. O protocolo – um dos vários firmados pela gestão do governador tucano Beto Richa num programa batizado de Paraná Competitivo – gerou um regime de tributação exclusivo para a Ambev, menor do que o normal, como contrapartida à construção de uma unidade da empresa na cidade de Ponta Grossa. Apesar de propagandear a iniciativa em releases e publicações oficiais, o governo nunca foi transparente quanto aos termos do acordo. Os detalhes só se tornaram públicos agora por causa de uma disputa judicial entre a Ambev e um bar.
Para manter seus benefícios tributários, a Ambev deve entregar ao estado um terreno de sua propriedade, localizado na região central de Curitiba. O problema: existe um bar em cima dele. E o dono, que alega ter um contrato com a Ambev para uso da área até 2027, não arreda o pé. João Guilherme Leprevost, o proprietário do estabelecimento, é irmão do deputado estadual Ney Leprevost, do PSD. Até 2016, o parlamentar era da base de apoio de Beto Richa. Os dois se tornaram adversários após Richa trocá-lo por Rafael Greca (PMN), seu desafeto. Agora na oposição ao governo, o político Leprevost, irmão do dono do bar, bombardeia o Paraná Competitivo.
O protocolo entre o estado e a Ambev foi incluído como prova na ação judicial que tem o bar e a multinacional em pólos opostos. A estimativa do total de benefícios concedidos à indústria é da Associação de Fabricantes de Refrigerantes do Brasil, que reúne pequenas empresas do setor de bebidas. Um economista contratado pela Afrebras chegou a esse valor a partir dos balanços anuais da Ambev. Para a entidade, a medida determinada pelo governador tucano cria concorrência desleal no setor, além de ter feito com que o contribuinte desse de presente uma fábrica para a multinacional.
“O acordo com a Ambev criou uma concorrência desleal, e mostra o poder público trabalhando exclusivamente para as grandes corporações”, protesta Fernando Rodrigues de Bairros, presidente da Afrebras, que reúne 106 fabricantes de bebidas de menor porte em todo o país – 16 delas delas instaladas no Paraná. “O ICMS é o imposto de mais impacto. Com os benefícios do governo, a alíquota da Ambev fica em 3%. A do pequeno fabricante é de 12%”.
A Assembleia Legislativa do Paraná chegou a aprovar uma lei, em setembro de 2016, para tentar desfazer parte das desigualdades entre grandes e pequenas empresas. O que aconteceu em seguida ilustra a política de dois pesos, duas medidas do governador.
Beto Richa vetou o texto aprovado pelos deputados e que beneficiaria os concorrentes menores. Num raro rompante de independência, a Assembleia afrontou o governador e derrubou o veto. O tucano contra-atacou: entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Paraná. Richa argumentou que o benefício fiscal dado aos pequenos fabricantes carecia de “qualquer estudo ou prognóstico do impacto que tamanha liberalidade pode causar à economia paranaense. (…) Pode causar prejuízos incalculáveis para a arrecadação do Estado do Paraná em pleno momento de crise fiscal.”
Beto Richa vetou o texto aprovado pelos deputados e que beneficiaria os concorrentes menores
Richa apontou que o prejuízo aos cofres seriam de R$ 12 milhões ao ano – uma renúncia de receita que, segundo ele, “sequer foi precedida das cautelas exigidas pelo artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal”. Trata-se, justamente, do trecho da LRF que exige que renúncias do tipo sejam acompanhadas por estudos do impacto nas contas públicas. O tucano ainda argumentou que o Conselho Nacional de Política Fazendária, o Confaz, não havia autorizado o benefício proposto pelos deputados. Acontece que o mesmo conselho também não chancelou as mordomias à Ambev.
Os argumentos do governador foram prontamente acatados pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Em março de 2017, o TJ acolheu o pedido de suspensão cautelar dos efeitos da lei que favoreceria os pequenos fabricantes. A ironia é que, àquela época, já estava em pleno vigor o Regime Especial de Tributação para a Ambev. Segundo a Afrebras, ele custa R$ 105 milhões anuais à arrecadação do Paraná, cerca de dez vezes mais do que o governo perderia com os pequenos.
Cumprindo parte de seu papel no acordo, a Ambev construiu sua nova planta em Ponta Grossa, cidade de 344 mil habitantes a pouco mais de 100 km de Curitiba. Inaugurada em maio de 2016, a fábrica, que produz cervejas e refrigerantes, custou R$ 848 milhões, segundo materialdistribuído pelo próprio governo Richa. “A Ambev foi uma das primeiras grandes indústrias a aderir ao Paraná Competitivo, programa que atraiu um volume de investimentos, nacionais e estrangeiros, sem precedentes na história do Estado”, jactou-se o tucano, à época.
Faltou só dizer que o que a Ambev investiu para construir a unidade é uma quantia similar ao que deve deixar de pagar em impostos até 2020, conforme a estimativa da Afrebras. Dito de outra forma, o estado do Paraná e seus habitantes irão pagar, via renúncia fiscal, pela nova fábrica da Ambev.
Apresentamos ao governo do Paraná a estimativa, feita pela Afrebras, de que os benefícios à Ambev podem chegar a R$ 843 milhões em oito anos, e pedimos uma posição a respeito. Não recebemos resposta.
A nova fábrica da Ambev em Ponta Grossa empregava, à época da inauguração, 430 pessoas, segundo o governo do Paraná; há que se considerar que postos de trabalho foram extintos com o fechamento de outras duas fábricas da empresa em Curitiba e região. Já a Afrebras diz que suas 16 associadas paranaenses empregam 3 mil pessoas.
À Ambev, The Intercept Brasil perguntou quantos postos de trabalho foram extintos com o fechamento das duas plantas na região de Curitiba, e quanto se economizou em pagamento de impostos graças ao acordo com o governo. A empresa ignorou as questões, preferindo dourar a pílula: disse ter 1.417 empregados no Paraná, que recolheu R$ 878,4 milhões em impostos em 2017 e R$ 3,7 bilhões em cinco anos. Defendeu ainda os incentivos que recebeu, afirmando que eles “contribuem diretamente para a criação de empregos, o fomento à inovação, à industrialização, e uma série de outros impactos positivos na sociedade”.
Ainda mais grave que o favorecimento a uma grande corporação em detrimento de empresas locais que não levaram o mesmo benefício é a suspeita de irregularidades que paira sobre o acordo entre governo estadual e Ambev. Não há decisão do Conselho Nacional de Política Fazendária autorizando o governo estadual a firmar o protocolo de intenções com a companhia. O Confaz, que reúne secretários da Fazenda de todos os estados e do Distrito Federal, precisa chancelar por unanimidade acordos como esse, para que eles não venham a ser questionados judicialmente.
Até então, a única peça pública sobre o acordo do governo com a Ambev era o Regime Especial de Tributação 4777/2012, publicado no Diário Oficialda Indústria, Comércio e Serviços de 7 de dezembro de 2012 – um dos expedientes obrigatórios para garantir a validade legal da medida. O problema é que ali não constavam todos os itens do acordo – a entrega do terreno ao estado, por exemplo, ficou de fora.
“Se não há autorização por convênio publicado no site do Confaz, ele foi concedido de forma unilateral”, disse Luiz Augusto Dutra da Silva, coordenador do Confaz.
“De maneira unilateral, sem autorização prévia do Confaz, estados concederam benefícios a empresas se valendo exclusivamente de legislação local”
“Houve muitos casos como esse [entre governo do Paraná e Ambev], num contexto de guerra fiscal entre os estados. De maneira unilateral, sem autorização prévia do Confaz, estados concederam benefícios a empresas se valendo exclusivamente de legislação local”, explica o advogado Fabio Artigas Grillo, doutor em Direito Tributário pela UFPR e presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/PR.
Outros dois especialistas em direito tributário, que falaram à reportagem sob a condição de anonimato, apontaram ainda que o acordo desrespeitou a Lei de Responsabilidade Fiscal ao não incluir nas leis orçamentárias posteriores a 2012 estudos que avaliassem qual o impacto que a renúncia de receita teria nas contas do estado.
Questionada a respeito, a Secretaria da Fazenda respondeu: “Nunca foram publicadas informações sobre a renúncia fiscal relativa a Ambev pois trata-se de ICMS ‘novo’”. Em outras palavras, o que o governo diz é que não abriu mão de receita tributária, pois ela só passou a existir a partir dos investimentos da Ambev.
Além de reduzir o ICMS cobrado no Paraná sobre os produtos da Ambev e lhe conceder créditos tributários, o governo ofereceu facilidades invejáveis à multinacional para ajudá-la a erguer e operar sua nova planta. Ficou suspensa a cobrança do imposto estadual sobre a importação de máquinas e equipamentos para a linha de produção e de matérias-primas.
O Confaz prepara uma anistia ampla, geral e irrestrita para estados que lançaram mão de artifícios como os usados pelo programa Paraná Competitivo sem obter autorização do órgão. Tal anistia foi sinalizada por lei complementar sancionada em 2017 por Michel Temer e ratificada por um convênio do Confaz.
“Abriu-se uma janela para a regularização de benefícios fiscais concedidos por estados sem necessidade de aprovação por unanimidade no conselho”, explicou Dutra da Silva. Estados têm até 29 de março para aderir à anistia – o Paraná ainda não o fez, segundo o Confaz. Em troca, deverão tornar públicos, num portal a ser colocado no ar pelo conselho, documentos como os que o Paraná hoje mantém sob sigilo.
“É uma tentativa de botar um freio [na guerra fiscal], num momento em que se veem estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul com problemas de caixa até mesmo para pagar salários”, opinou o tributarista Artigas Grillo.
Quem sai ganhando, porém, são as empresas, já que os benefícios dados a elas pelos estados não poderão mais ser questionados judicialmente. “Há uma controvérsia constante se esses benefícios são constitucionais quando concedidos sem a aprovação de cada um dos Estados brasileiros participantes do Confaz. Alguns estados e o Ministério Público ajuizaram ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal a fim de contestar a constitucionalidade de certas leis estaduais que oferecem programas de incentivo fiscal unilateralmente, sem a aprovação prévia do Confaz”, admitiu a Ambev num documento emitido em março de 2017 e dirigido à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos.
No mesmo relatório, a companhia informa que “nos exercícios encerrados em 31 de dezembro de 2016 e 2015, registramos R$ 1,54 bilhões e R$ 1,36 bilhões, respectivamente, em créditos fiscais relativos a programas de incentivo fiscal”. Pelo andar da carruagem, não perderá um único centavo deles.
A Ambev não é a única gigante do setor de bebidas a ter acordos para obter vantagens tributárias do governo do Paraná. Heineken, Cervejaria Petrópolis e Coca-Cola também têm vantagens similares, firmadas sob o mesmo programa Paraná Competitivo. Como ocorria até há pouco tempo com o documento firmado com a Ambev, esses também são mantidos sob sigilo.