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Segundo Fisco, isenções da Zona Franca são usadas para obter vantagens concorrenciais no País
Por O Joio e O Trigo| 09/12/2019
Receita Federal detalhou de maneira inédita as manobras usadas pela indústria de refrigerantes para justificar o dinheiro oriundo de notas superfaturadas na Zona Franca de Manaus. O órgão aduaneiro expôs que não há um, mas uma série de artifícios utilizados para majorar os lucros obtidos com créditos tributários.
O documento reforça o que foi demonstrado em reportagem do Joio publicada em dezembro: um acerto “por fora” é o que explica o esquema iniciado nos anos 1990 e que, desde então, só fez ganhar volume – hoje, somando todos os subsídios, são mais de R$ 7 bilhões ao ano.
Publicidade e direitos de uso de marca, que deveriam ser pagos pelas empresas, acabam financiados pelos cidadãos brasileiros, segundo a Receita, que produziu um infográfico para expor os caminhos adotados por Coca-Cola, Ambev e companhia.
“Um dos artifícios usados para inflar o preço dos insumos é a inclusão das despesas com publicidade e propaganda das bebidas”, diz a Receita. É um caso raro em que uma empresa supostamente banca a publicidade de outra. “A consequência prática deste procedimento foi que, nos últimos anos, mais de um terço dos gastos bilionários com propaganda de refrigerantes e outras bebidas foram pagos pelo contribuinte brasileiro.”
Os custos com divulgação de bebidas adoçadas ultrapassam R$ 3 bilhões ao ano, segundo a Pesquisa Industrial Anual do IBGE. Essa informação corrobora a acusação feita há anos por fabricantes regionais, de que os créditos tributários vinham sendo usados para concentrar mercado e criar uma competição desigual.
Outra raridade desse sistema é o pagamento de direitos de marca. “Estas empresas declaram que algumas das marcas mais valiosas do mundo são cedidas de graça para uso pelos fabricantes das bebidas. Na realidade os valores de royalties estão embutidos no preço que os fornecedores de insumos de marcas estrangeiras, localizados em Manaus, cobram dos fabricantes das bebidas”, registra a Receita.
Incentivos tributários fizeram com que as empresas deslocassem à Zona Franca a produção de concentrados, que são os xaropes utilizados na fabricação de refrigerantes e outras bebidas adoçadas, como energéticos, chás e sucos. A primeira foi a Coca-Cola, em 1990, seguida pela Antarctica, mais tarde fundida com a Pepsi na Ambev.
Assim, cada marca tem dezenas de engarrafadoras espalhadas pelo país, que compram o concentrado na Zona Franca, diluem, embalam e repassam às distribuidoras.
Entre uma etapa e outra da fabricação, a Constituição prevê a possibilidade de cobrar um crédito em cima do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). É uma maneira de evitar que a tributação recaia toda sobre o consumidor final. Dessa forma, se uma engarrafadora compra o xarope a R$ 100, e há uma diferença tributária de 16%, tem direito a um crédito de R$ 16.
No caso da Zona Franca, porém, não há pagamento de impostos, mas as corporações do setor nunca se fizeram de rogadas em cobrar os créditos como se o IPI tivesse sido recolhido. Como mostramos em nossa primeira reportagem, em outubro de 2017, esse valor se aproxima de R$ 2 bilhões ao ano – número confirmado pela Receita.
No documento publicado ao final de novembro, o órgão público diz que o setor de refrigerantes “foge completamente” ao que seria esperado para uma atividade produtiva, resultando em arrecadação negativa para o governo. É uma situação única, na qual empresários lutam para manter impostos altos.
Por lei, a Receita não pode divulgar os dados sobre uma corporação. Então, o documento faz menções à situação do setor como um todo. Mas, em outras ocasiões, o Fisco explicou que as três maiores empresas da Zona Franca – pertencentes a Coca, Ambev e Brasil Kirin – concentram 90% dos créditos tributários.
Quanto mais alta a nota fiscal, maior o crédito, o que funciona como estímulo ao superfaturamento. A Receita chegou a encontrar uma diferença de 64 vezes entre o xarope vendido ao engarrafador e o custo real de produção. Já havíamos mostrado como havia uma discrepância grande entre o xarope vendido pela Coca ao mercado interno e o enviado para exportação.
Com notas fiscais tão altas em mãos, as corporações dão início a uma série de manobras que visam a justificar esses recursos. A engarrafadora recebe as notas como se fosse uma operação normal. Mas não as paga de fato, já que o dinheiro retorna por meio de transferências bancárias, garantindo a devolução daquilo que a compradora “pagou” a mais pelo xarope. É aí que entram os artifícios que fazem com que os brasileiros arquem com publicidade e direitos de marca.
Com isso, acrescenta o órgão público, mina-se aquilo que seria o princípio da Zona Franca: o incentivo à indústria nacional, uma vez que fabricantes estrangeiros acabam obtendo uma vantagem concorrencial sobre os brasileiros. A Receita declara que o principal “produto” das fabricantes não são os concentrados, mas os direitos de uso de marca.
Além disso, como também havíamos mostrado, a “maior parte” dos fabricantes emite notas por produtos que sequer poderiam ser chamados de concentrados. Simplesmente simula-se a fabricação de uma matéria-prima que, na prática, não pode ser identificada como xarope.
Revelamos o caso do Matte Leão, da Coca-Cola. Em tese, a erva viaja quatro mil quilômetros desde o Sul para ser transformada em um xarope muito simples. Depois disso, retorna mais quatro mil quilômetros até a fábrica da empresa, no Paraná, para ser adicionada de água e açúcar.
“Alguns fornecedores de Manaus dão saída a kits formados por ingredientes acondicionados separadamente, sendo que alguns kits incluem até mesmo substâncias sólidas que não estão concentradas”, complementa a Receita.
Procurada, a Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas não Alcoólicas (Abir), que representa as empresas do setor, disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não tem acesso aos dados da Receita e que não poderia comentá-los.
“O paper ‘Análise da tributação do setor de refrigerantes e outras bebidas açucaradas’, sem autoria determinada, publicado no site da Receita Federal e datado de 26 de novembro de 2018, trata, de forma genérica e parcial, de dados que envolvem o sigilo fiscal de empresas não identificadas. A Abir não tem acesso a esses dados e não pode comentá-los”, declarou a associação, em nota enviada a esta reportagem.
A Receita e a Procuradoria da Fazenda Nacional tentam desde os anos 1990 reverter o esquema. Mas esbarram na pressão política das empresas, que mobilizam parlamentares, ministros e juízes para frear a ação do poder público.
A janela de oportunidade se abriu com a greve dos caminhoneiros, em maio do ano passado. A necessidade de o governo encontrar rapidamente recursos para compensar os benefícios concedidos à categoria foi o mote para a Receita conseguir reduzir a tributação dos refrigerantes. Ao igualar as alíquotas de concentrados e refrigerantes, na prática foi zerado o crédito de IPI.
Mas, a partir de 1º de janeiro, esses créditos começaram a ser gradativamente devolvidos às empresas, graças a decreto firmado em setembro por Michel Temer, apenas oito dias depois de uma misteriosa visita de um representante de Coca e Ambev ao Palácio do Planalto.
O documento da Receita foi emitido em meio à guerra de bastidores com as empresas. O tom da análise é atípico para o órgão público, famoso pela discrição. Nesse caso, a contrariedade com a manutenção do esquema é evidente.
As empresas chegaram a mobilizar o Legislativo para derrubar o primeiro decreto, firmado em maio. Para isso, acionaram parlamentares dos mais variados partidos, todos com financiamento de campanha por Coca, Ambev e Brasil Kirin. Um projeto nesse sentido chegou a passar pelo plenário do Senado, mas acabou engavetado pela Câmara em dezembro, numa derrota histórica para as corporações do setor.
As empresas alegam que a retirada dos créditos de IPI fará com que fechem as fábricas na Zona Franca. A Receita reforça o que já havíamos mostrado: a ameaça não faz sentido porque, mesmo sem o esquema, as empresas continuam a receber generosos subsídios em imposto de renda, PIS-Cofins e tributos estaduais e municipais. “Esclareça-se que não está se pretendendo acabar com os incentivos fiscais, mas sim reduzi-los para níveis proporcionais aos benefícios gerados para a região amazônica.”
O órgão voltou a combater a ideia de que as fabricantes de concentrados são fundamentais para o bem-estar social do Amazonas. Recordou que menos de mil empregos são garantidos diretamente por esse segmento. E reforçou que apenas R$ 215 milhões ao ano ficam de fato para os milhares de produtores de guaraná e açúcar da região.
Para a Receita, extinguir o esquema de créditos de IPI não teria impactos para o consumidor, já que as empresas têm uma grande margem de lucro para absorver essa redução de incentivos.